Apresentação

XII Encontro Internacional OTIUM – Associação Ibero-americana de Estudos de Ócio e VI Congresso Internacional em Estudos Culturais

Ócios e Resistências: Crescer e Envelhecer em Contextos Culturais Diversos

 

O XII Encontro Internacional OTIUM, da Associação Iberoamericana de Estudos de Ócio, e o VI Congresso Internacional em Estudos Culturais, organizado pelo Núcleo de Estudos em Cultura e Ócio – NECO do Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro (CLLC/UA), toma como tema central os tempos de ócio, enquanto práticas contra-hegemónicas e de resistência.

Longe de constituir um ‘nada fazer’, o ócio, nas suas infinitas declinações e possibilidades, pode constituir-se como práxis produtora de saberes e de sujeitos cuja acção performativa na polis questiona saberes, discursos e práticas vigentes, mesmo quando disso não têm consciência.

No actual mundo globalizado, as sociedades organizam o seu tempo livre tornando-o um bem transacionável e de relevante valor económico. Apesar da diversidade dos contextos culturais e geográficos em que um certo modo de produção capitalista de consumo e produção global se instalou, por todo o lado se espera que sujeitos e comunidades se definam a partir do lugar que ocupam no mercado, quer nos seus tempos de trabalho, como produtores de bens e serviços, quer nos seus tempos livres, como consumidores desses ou de outros bens, especificamente criados para fornecer produtos de lazer e distração. Em suma, o que deveria ser um tempo dedicado ao ócio tornou-se em mais uma oportunidade de negócio.

Com efeito, as relações de poder produzem saberes e discursos hegemónicos, que têm como fim docilizar os corpos para extrair deles o máximo das suas forças produtivas (Hall, 2016). Referimo-nos, por exemplo, à criação de marcos temporais socialmente instituídos, que procuram determinar quando o indivíduo é considerado um corpo produtivo, quando já não o é ou ainda não o é. Pensamos nos casos daqueles corpos cuja força de trabalho é desvalorizada pelo mercado ou usada e descartada ao sabor da flutuação das crises económicas dos mercados financeiros globais. Apesar disso, esses corpos, atravessados por discursos e saberes (Foucault, 2010a, 2010b, 2012) internalizados ao longo da vida, sustentam práticas de ócio que resistem e conferem sentido pessoal e político às suas vidas, e que podem ir desde as ações mais íntimas e consideradas mais ínfimas e sem importância, até às mais visíveis e socialmente impactantes.

A proposta deste Congresso consiste precisamente em trazer ao debate científico e académico escolhas e modos de organização do tempo livre de sujeitos e comunidades que não se mobilizam primariamente em função do mercado capitalista globalizado (embora com ele possam ter relações) e que, sabendo-o ou não, vivem o seu tempo de ócio (e até talvez seu tempo de trabalho) a partir de um outro lugar, promovendo outro tipo de valores e práticas que não as da geração de renda e lucro.

Estar à margem do mercado e das suas lógicas pode, em certas circunstâncias, favorecer práticas contra-hegemónicas e mesmo fenómenos de resistência, ainda que em pequena escala, favorecendo o que pode ser designado por um ‘ócio débil’ (Baptista, 2016; Inchaurraga, 2012), praticado por sujeitos e comunidades precárias, excluídos do actual mercado capitalista globalizado. Pensamos nas comunidades e nos sujeitos vítimas de todo o tipo de exclusão económica, social e cultural: desempregados, emigrantes e refugiados, jovens marginalizados, crianças vítimas de violência, sujeitos discriminados em função do género, da idade, da cor das suas peles, das suas limitações físicas ou psicológicas, da sua condição académica ou económica, das suas opções religiosas ou políticas, etc.

Enfim, referimo-nos aos tempos de ócio daquela parte da humanidade que é sistematicamente violentada e discriminada e que, por isso, vê as suas vidas determinadas a partir dos lugares de exclusão criados pelo mercado financeiro, pela economia capitalista e pela cultura globalizada. Vidas desterritorializadas (Deleuze e Guattari, 1980), que não cessam de se procurar reterritorializar a partir de lugares de invisibilidade e exclusão e que, do ponto de vista dos Estudos do Ócio e dos Estudos Culturais, longe de serem inúteis e irrelevantes, podem ser ociosamente produtivas, resistentes e até inspiradoras.

Neste encontro pretendemos conhecer, estudar e valorizar estas práticas de ócio que se encontram frequentemente invisibilizadas, por serem em primeiro lugar não-produtivas e, portanto, desvalorizadas pelo mercado. O que pretendemos saber é de que modo elas contribuem para empoderar sujeitos e comunidades, favorecer sentidos (individuais e comunitários) para a vida, estimular processos de auto e hetero-identificação, do cuidado de si e do sentido de comunidade, fazendo emergir a solidariedade, a acção e o projecto em prol da comunidade e dos seus mais desfavorecidos, conferido sentido às vidas mais precárias e mais desvalorizadas pelo mercado global.

O congresso procura, assim, promover a interação entre investigadores e público em geral interessado em repensar conceitos e abordagens relativos à multiplicidade de ócios e das resistências neles implicados, estudando, na diversidade dos contextos culturais, práticas com relevância política e micro-política que favoreçam, ainda que de forma indirecta e não consciente, modos de resistência à homogeneização cultural e económica sugerida pelo sistema capitalista, com impacto no ciclo de vida dos sujeitos e das comunidades.

Em qualquer dos casos, trata-se de práticas que buscam resistir aos processos de docilização e alienação de corpos e vidas (Foucault, 2012), subvertendo a lógica e a gramática de discursos hegemónicos, que apenas fazem existir o que é economicamente produtivo, o que está ao serviço do lucro e da mercadoria, com a consequente objectualização e comodificação do humano. Neste Congresso interessa-nos, pelo contrário, investigar, dar a conhecer e visibilizar práticas ociosas de resistência, quer dizer, não utilitárias, não produtivas, não directamente condicionadas pelo mercado, mas que contribuam para imaginar a possibilidade de uma existência mais plena do humano.

O congresso acolherá todos os trabalhos de investigação que, oriundos de qualquer área do conhecimento, contexto cultural ou origem geográfica, tenham como objectivo aprofundar formas de ócio resistentes e débeis de sujeitos, grupos de sujeitos ou comunidades, cujas práticas e micro-práticas contribuam para disseminar a possibilidade de um mundo melhor, de um mundo onde a vida humana seja menos precária para todos.

Referências bibliográficas

Baptista, M. M. (2016). Estudos de ócio e leisure studies – o atual debate filosófico, político e cultural. RBEL – Revista Brasileira de Estudos do Lazer — Dossiê Lazer e Cultura, v. 3, n. 1, jan./abr., 20-29. ISSN: 2358-1239. Disponível em: https://seer.ufmg.br/index.php/rbel/issue/view/303

Deleuze, G. & Guattari, F. (1980). Mille Plateaux – Capitalisme et schizophrénie 2, Paris: Les Éditions de Minuit (coll. « Critique »)

Foucault, M. (2010a). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2ed. (Trad. Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.

Foucault, M. (2010b). Vigiar e punir. 38ed. (Trad. Ramalhete, R.). Petrópolis: Vozes.

Foucault, M. (2012). Verdade e poder. In R. Machado (Org.). Microfísica do poder. 1ed. (Trad. Machado, R.). São Paulo: Paz e Terra. p.01-14.

Hall, S. (2016). Cultural Studies 1983: a theoretical history. J. D. Slack, & L. Grossberg (Ed.). Durham: Duke University Press.

Inchaurraga, Z. Z. (2012) Por un ocio posmoderno [no] violento. Interpretado desde la crisis y la hermenéutica de Gianni Vattimo. In: J. C. Amigo & J. D. Nebreda (eds.). OcioGune 2012 – El Ocio Trans-formado[r]. Resignificaciones y Tendencias del Ocio en Tiempos de Crisis. Bilbao: Universidade de Deusto, 2012.

Entidades Organizadoras

Companhia Aérea Oficial